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Seis graus de separação _ por Rodris
“...o Ateliê Fidalga calca-se na experiência de todos, dos antepassados e dos de agora, na tradição e na inquietação. Um ateliê que usa o modelo horizontal de aprendizado do conhecimento, com direitos e deveres simétricos e equidistantes. É da arte da fidalguia que se aprende neste ateliê, exercício da discussão sobre o fazer artístico e o da sua deontologia, do prazer de ser artista e revelar verdades e sonhos que a arte promove…”
Paulo Reis
Para mim é muito significativo começar este texto com uma citação do saudoso crítico Paulo Reis a respeito do Ateliê Fidalga, extraída de uma apresentação feita pela Sandra Cinto e o Albano Alfonso para o catálogo da exposição do grupo, no Paço das Artes em 2010. De fato, o Fidalga é um lugar de aprendizado, mas também da confiança e da parceria, onde os conhecimentos são compartilhados horizontalmente. Um lugar necessário num mundo onde cada vez mais as trocas são intermediadas pelos smartphones, onde a escola virou mero produto do jogo político, e onde os afetos estão cada vez mais embrutecidos pelo individualismo. É claro que se tentássemos dar conta da amplitude destas possibilidades humanas, certamente estaríamos fadados ao fracasso. Mas antes de tudo, esse lugar necessário é o lugar do encontro, no qual revelam-se verdades e sonhos que só a arte é capaz de promover como Paulo sagazmente definiu. É o lugar onde a palavra generosidade está na ponta da língua destes que aqui se encontram, os artistas.
E o que dizer desta pequena, mas preciosa exposição que resulta do compartilhamento de todas essas experiências resumidas nas produções dos artistas Alice Ricci, Camilo Meneghetti, Gian Spina, Leka Mendes, Marcelo Fontana e Vitor Mizael?
Uau Alice! Quanto tempo você gastou para fazer este trabalho? O escritor Rubens Alves diria; quando achamos que estamos ganhando tempo estamos na verdade estragando tempo. O prazer demanda tempo.
Alice está interessada em trabalhar com o Tempo, e reflete sobre sua passagem no período gasto para realizar um trabalho; não só o artístico, mas qualquer trabalho que requeira concentração, detalhamento, repetição e rigor. Assim são seus desenhos e composições: algumas vezes lembram paisagens estelares ricamente detalhadas, como este que está na exposição, em outras, inventários que rememoram os de história natural elaborados minunciosamente com carimbos ou colagens. Há ainda as séries que sugerem ressignificações dos objetos do cotidiano, por meio de interferências em embalagens, rótulos e elementos gráficos que povoam nosso entorno. Alice nos conta que, ao fazer uma viagem para uma cidadezinha onde iria exclusivamente para se dedicar ao seu trabalho de arte, constata que esse tempo, convenção humana, inevitavelmente se relaciona ao lugar. Certamente ela já sabia disso, mas é para isso que servem os deslocamentos, para abrir-nos os olhos. Isolada nesse vilarejo no interior da Hungria, ela se viu com tempo de sobra, inclusive com tempo para se dedicar a coisas que nunca lhe sobrara tempo para fazer. Ironicamente, Alice começa a desenhar e a criar composições sobre as páginas de jogos de passatempo húngaros. Passatempo, sim, desses que vendem em bancas de revistas. Essas obras não estão na exposição, mas de certo modo estão muito presentes como pensamento artístico, desta artista que trabalha.
E a dor, Gian? Esse artista, que não chama o trabalho que faz de obra, mas sim de poema, está interessado na fusão entre atuação artística e vida, deve ser por isso que ele frequentemente aparece em vídeos ou fotografias equilibrando-se entre fronteiras – sejam essas fronteiras concretas ou imaginárias, onde pode permanecer neutro na lacuna entre dois lugares, simultaneamente, ou alternando-se entre um lugar e outro. Concomitantemente, assim como Alice, há o Tempo, mas é um outro tempo que Gian nos instiga a olhar, aquele que se dilata ou se contrai de acordo com sua entrega à substância do poema que pretende colocar no mundo. Como no caso da ação onde passou horas se equilibrando de bruços sobre a linha do Equador no meio da floresta amazônica, ou do trabalho voluntário que se propôs a fazer para ajudar as vítimas do desastre ambiental em Mariana, ao longo de 7 dias. Nessa exposição, Gian nos apresenta frames fotográficos que são validados como ações pela força do seu discurso e a contundência das imagens. Há ainda a ação registrada em vídeo onde ele se propõe a pairar sobre o encontro das águas dos rios Negro e Solimões, a iminência do perigo obriga-o a criar artifícios de edição neste vídeo para conseguir estender o tempo de permanência no lugar. Há algo de um tempo forjado nisso, e por que não? A constatação física do tédio, do perigo, do irremediável ou mesmo a posição incômoda do corpo, essas dores que dilatam a passagem temporal e que de certo modo até chegam a diluí-la. Esse nosso tempo demasiado humano que na maioria das vezes, arrisco a dizer, não nos permitimos dispô-lo para percebermos, mesmo que por alguns instantes, a dor do outro.
Do tempo, do esvaziamento, da obliteração, do abismo. Várias são as composições em que Camilo parece ter traçado o esboço de uma trama psicológica na paisagem, um traspassamento gestual do tempo na matéria. Mas logo fica claro que o mote principal é um predomínio do gesto expansivo, da preferência pela ocupação da superfície por intermédio de traçados e apagamentos, como fragmentos de cenários sobrepostos uns aos outros de modo a quase chapar a pintura. Em sua produção mais recente, o papel já não suporta mais o peso dos materiais. Camilo abandona a prática de trabalhar com séries ou peças individuais sobre telas ou papéis e passa a se dedicar a uma única estrutura pictórica, dentro de sua própria casa. É como se o seu já inquieto gesto de pintar fosse tomado por uma insatisfação contínua, onde o dramatismo vai sendo incorporando a um trabalho mais despojado, ambiental, arquitetônico, íntimo e afirmativo. Segundo o artista, há uma vivência que marca sua obra, que passa inclusive pela nossa já batida, mas inesgotável preocupação com as contrações e dilatações do tempo, pelo lugar, pelas escolhas de vida, pelo rigor e pela autoimposição do fazer artístico, como se respirar dependesse desse fazer. A parede da casa é pintada, lavada, desenhada, pintada de novo, apagada mais uma vez, dá lugar ao grafite e ao carvão, e depois vem asfalto, barro, limo, ferrugem... é lavada outra vez (penso em Sísifo, e sua tarefa insana de arrastar uma imensa rocha morro acima, que sempre despenca tão logo ele chega ao topo). Uma obliteração que parece nunca ter fim, até que se anula pelo excesso: é quando o artista supostamente termina o trabalho. Essa anulação forjada é a força motriz que vem alimentando não só o trabalho deste artista, mas também sua vida – é como se ele estivesse flertando com o abismo, e colocando à prova sua própria existência. A transposição desta ação pictórica para a parede da sala do projeto Fidalga é só mais um respiro desta experiência, que vem sendo realizada e vivenciada em tempo real.
Marcelo Fontana está interessado nos processos fotográficos, mas não somente nas possibilidades técnicas, tampouco está deslumbrado com a já “batida” ideia das “novas mídias”(que como articulação de linguagem dentro das artes visuais tem-nos trazido muito pouco em termos de inovação, e aberto um perigoso precedente para um entendimento da arte como entretenimento). Marcelo está olhando para a fotografia como repositório poético, e ao observarmos mais atentamente o percurso deste jovem artista, conseguimos perceber claramente aspectos muito próprios desta linguagem, como representação da realidade, memória, tempo e encenação, entre outros aspectos, afinal, ele vem da fotografia. Mas encontramos também uma presença no trabalho que merece uma especial atenção: são operações onde significado e função adquirem nuances alheias a uma ideia de fotografia como descrito acima. No trabalho proposto para a exposição, Marcelo parece explorar, ou mesmo atualizar, um problema central da fotografia moderna: a contradição aparentemente insolúvel entre abstração, com suas pródigas implicações, e a intenção de atribuir a essa linguagem significados concretos. Aqui, o artista parece buscar uma espécie de grau zero da fotografia. Assim como nas suas obras anteriores, o tempo e a história se apresentam, mas agora de forma enigmática. Ele projeta sobre a parede da sala luz. Esta luz tão cara a fotografia. E o velho projetor que projeta a luz Marcelo, o que você nos diz?
A casa, com a árvore e o sol – geralmente esses são elementos dos primeiros e mais frequentes desenhos das crianças. A casa é o espaço de resguardo, onde ficam a mesa, a cama e o fogão, sinônimos de acolhimento. As paredes externas e o teto da casa nos protegem, para que não nos dissolvamos na vastidão da terra. O trabalho da Leka, artista que também começou na fotografia, abarca imagens fotográficas de pequeno a médio porte, que podem aparecer tingidas com tinta, coladas ou sobrepostas. Vez ou outra, são apresentadas apenas como fotos, que podem vir acompanhadas ou não de coisas coletadas nos lugares de origem dessas imagens: pedras, fragmentos de magma resfriado ou mesmo vestígios deixados pelas pessoas. Quando as próprias fotografias não são também objetos apropriados pela artista. Existe uma geografia nisso, que claramente está dentro do campo de interesses da artista. As imagens quase sempre são de paisagens desoladas, mas o desolamento aqui não é sinônimo de feiura, pelo contrário, existe uma beleza que é inóspita, com um tempo que não é o da medida humana, selvagem, vasto - como se a artista estivesse querendo nos lembrar do tamanho da nossa arrogância e impotência diante do poder e da grandeza da natureza. A foto montagem que Leka apresenta na exposição, com a imagem da casa soterrada possivelmente por um cataclismo vulcânico e apenas com o teto a mostra, inevitavelmente conecta-se ao belíssimo trecho da narrativa O retábulo de Santa Joana Carolina, do escritor Osman Lins, cotejada no topo deste parágrafo. Mas o que nos instiga no trabalho, mesmo com a possibilidade deste insight reconfortante contido no texto do escritor, é que Leka parece nos alertar, como uma alegoria aos tempos atuais, que não temos saída, que esse será o nosso inevitável fim, o apocalipse, merecido destino. Mas ainda assim, ela termina nos dizendo que é sobre os escombros desse lugar da destruição que retornamos para nos reconstruirmos.
Há muito tempo que as artes têm servindo-se da taxidermia como artifício de representação da natureza em seus processos. A taxidermia consiste na atividade artesanal, inicialmente para fins científicos, de embalsamar animais mortos para conserva-los como se estivessem vivos. Esta técnica ficou popularmente conhecida como empalhamento. Para Vitor, a taxidermia interessa menos por sua técnica do que pela sua eficácia enquanto objeto idealizado e a sua similaridade processual com a escultura. Quando falo em eficácia, falo nas qualidades representativas, que simulam as caraterísticas do animal, seus movimentos, proporções e expressões. A obra desse artista na exposição parece reforçar essa tentativa humana de simular a natureza, tal qual os pássaros empalhados anexados as lâmpadas interseccionadas num dos lados da sala que possuem a mesma luminescência da luz do sol ao meio dia. Mas parece haver um ruído nessa evocação da natureza, onde supostamente repousam os interesses do artista. Vitor tem trabalhando com questões relativas a história do mundo, opera entre a pintura, o desenho e o uso de objetos e animais empalhados, mesclados ou não, onde evidencia um movimento de afastamento sem possibilidade de retorno do ser humano em relação ao dito espaço natural. Hoje tão artificial e midiatizado quanto os ambientes virtuais e sua parafernália tecnológica.
Termino este texto refletindo sobre a diversidade de experiências possíveis contidas nas inquietações destes seis artistas. Há em cada um, e entre todos, a tentativa de unir nexos entre pontas que estão desconexas e, apesar de vivermos numa sociedade altamente técnica e individualista, a arte continua sendo um campo de experiências fundamental para lidarmos com nossa inquietações, incertezas e perplexidades diante de um mundo em processo.
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