Observatório de imagens inalcançáveis _ Leka Mendes (english below)
Tempora de Projetos 2022 _ Paço das Artes
por Ana Roman
São Paulo, setembro 2022
Em 2100, naves espaciais iniciam a campanha oficial de colonização de Marte, planeta rochoso do Sistema Solar mais distante do Sol. Após anos de captação de imagens, prospecção e da mobilização de parcela fundamental da indústria - financiada por milionários - construiu-se, no planeta, a primeira cidade habitável, à imagem e semelhança das cidades terrestres. Como uma maneira de poupar recursos escassos ao planeta vermelho, enviaram-se, para Marte, naves inteiras de entulho e de cimento de construção. A população que migra para o planeta é, neste primeiro momento, proveniente das camadas mais subalternizadas da sociedade: a proposta dos organismos internacionais é que ela se aproprie do solo e construa o 'planeta do futuro'. Após cerca de 1000 anos-da-Terra do início da vida em Marte, os descendentes do Homo Sapiens Sapiens que habitaram o planeta passam a conviver com uma nova espécie de hominídeo: o Homo Sapiens Plantae. A nova espécie surge como consequência direta dos ensinamentos da filósofa Donna Haraway acerca da parentalidade(1), que passam a ser encarados pela população de forma quase religiosa. O Homo Sapiens Plantae é o humano-mais-que-humano-cyborgue-planta e apresenta melhores capacidades de sobrevivência no planeta Marte.
Esta espécie de epígrafe é uma introdução à instalação Observatório de Imagens Inalcançáveis, da artista Leka Mendes. A ficção científica sempre foi um gênero que me interessou enquanto leitora, mas o esforço para escrevê-la é quase hercúleo, tendo em vista a dificuldade em imaginar alternativas às formas de habitar o planeta que construímos enquanto civilização moderna ocidental no Capitaloceno(2). Escrever este parágrafo foi uma tentativa de 'pensar diferentemente''(3), de olhar criticamente ao modelo da máquina no qual estamos inseridos - e que subjuga e extingue populações inteiras - e de criar uma ficção mobilizadora de outros mundos. Recorrer à ficção significa, usando as palavras de Anna Tsing, criar “artes de viver em um mundo danificado”(4). Leka Mendes é uma destas artistas que habita e produz nos escangalhos do mundo e que ficciona a partir deles.
Durante muitos anos de sua trajetória, Leka se voltou à fotografia. Desde muito jovem, quando cursava a Universidade, a linguagem aparece como forma de expressão e de trabalho. Ela passa a atuar profissionalmente enquanto fotógrafa e, em paralelo, dedica-se artisticamente à linguagem. Leka não se interessa em captar momentos decisivos ou reproduzir fidedignamente o mundo capturado pela câmera para catalogar aspectos da realidade que nos cerca. Para ela, fotografar é criar uma imagem do mundo. Esta criação passa pelo ato de fotográfico, pela apropriação e captura de imagens que já existem e pelos processos de revelação e da transferência destas imagens para outras superfícies. Os diversos objetos que integram o mundo em que vivemos são, para Leka, passíveis de se tornarem imagem.
Como um procedimento constante, ela realiza pela cidade de São Paulo, a coleta de fragmentos e detritos de construção. Inicialmente, tais detritos são a superfície que recebe as imagens - por meio de um processo que a artista chama de pós-revelação. Em um segundo momento, os fragmentos são usados como uma imagem em si: transformam-se em carimbos. Apesar de abstratos, estes detritos trazem, em sua materialidade e na forma que é reproduzida na superfície, a memória de onde vêm. Na série Antropocênicas, por exemplo, a superfície do algodão cru é marcada por fragmentos e detritos de construção mergulhados em tinta. Leka cria composições que, muitas vezes, nos lembram pequenas cidadelas, que se espraiam por toda superfície do tecido. Entre as construções urbanas, justapõem-se estrelas e satélites que orbitam no entorno do planeta Terra. Há, nestes trabalhos, certa contiguidade entre paisagem humana (e urbana) e o céu, que pode ser lida como uma espécie de síntese do Antropoceno, no qual a ‘queda do céu’, anunciada por David Kopenawa e por outras cosmogonias indígenas, faz-se iminente(5).
Já na série Logo será noite, os fragmentos de rocha e detritos são utilizados para criar composições celestes. A artista inspira-se no livro de Eratóstenes, Mitologia do firmamento – Catasterismo. O catasterismo é o ato de transformar qualquer ser, animado ou inanimado, em estrela/constelação, com o objetivo de eternizá-lo no firmamento(6). Logo será noite parte de uma representação ideal da paisagem celeste e da impossibilidade de capturarmos o presente no tempo astrofísico. Há, na série, uma ideia de contiguidade entre o céu e a terra. Entre as referências de Leka Mendes, está o filósofo Emanuele Coccia, que afirma que “tudo sobre a terra é apenas a forma e a expressão do céu”(7). Leka toma emprestada tal ideia e cria pequenos universos em tecido e brita: nossas imagens do universo são sempre imagens do passado, e é na rocha, que compõe a superfície terrestre, que nos encontramos, com esta longa duração que nos escapa às mãos e à memória.
Pode-se dizer que Observatório de Imagens Inalcançáveis é uma síntese desta reflexão acerca da contiguidade entre o céu e a terra. A artista cria, com estruturas industriais leves e que guardam a memória de certa pré-fabricação, suportes para tecidos nos quais repousam, como estrelas, fragmentos de pirita e outros minerais. Para observar os pequenos cosmos formados, existem ainda, na instalação, instrumentos de observação, que nos lembram telescópios, e que se movem pelo espaço físico no qual o observatório está montado. O que vemos quando miramos o olhar atento a diversos fragmentos minerais, que conformam, reunidos em uma única superfície, pequenos universos? Quais as pistas para entender o mundo no qual habitamos nos são dadas pelos fragmentos da superfície terrestre e pelos objetos industriais utilizados pela artista para compor seu microcosmos?
É interessante recorrer novamente ao filósofo Emanuele Coccia para responder a estas perguntas. O autor nos lembra que, durante séculos, a humanidade se dedicou a olhar o céu à procura de sinais para desvendar o futuro e o porvir. Enquanto isso, a terra era compreendida como uma espécie de guardiã do passado. Esta perspectiva é, segundo ele, um grande equívoco, que nos fez confundir a relação entre futuro, passado e presente. O céu é um dos maiores repositórios do passado, uma espécie de museu a céu aberto da história do Cosmos; já a terra, composta pela substância que vem do céu, é o que se presentifica todos os dias sob nossos pés. Nesse sentido, o autor afirma que "se queremos conhecer o porvir, não devemos erguer os olhos, mas baixá-los e dirigi-los a esse pedaço de céu que é nosso próprio planeta. Na verdade, tudo o que aparece na Terra é o futuro antecipado sob a forma de aposta. Todos os corpos da terra são um fundo especulativo; ela mesma é um corpo futuro e futurista"(8). Em Observatório de Imagens Inalcançáveis, Leka Mendes nos propõe que olhemos para a imagem do céu - e para todo passado nele contido - e que vejamos a terra e o futuro.
De certo modo, este trabalho faz ainda ressoar o pensamento de Donna Haraway acerca do Antropoceno(9). Para a filósofa, este período, e todas as relações exploratórias e dinâmicas desiguais que dele fazem parte - são terrenos, ou seja, são no e do mundo. Nesse sentido, são passíveis de interrogação: será que o Antropoceno deve ser deste jeito? Não há uma janela tão grande para que ainda possa se ver de outro modo, mas há ainda muitas boas histórias para serem contadas pelo ser humano e pelas diversas espécies que compartilham o mundo(10). O Observatório de Imagens Inalcançáveis é um convite para construir e narrar outros futuros a partir do que já existe no mundo.
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Haraway, DJ. Making kin in the chthulucene: reproducing multispecies justice. In: Clarke, AE, Haraway, D (eds), Making Kin Not Population. Chicago, IL: Prickly Paradigm Press, 2018.
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HARAWAY, Donna J. Staying with the trouble: Making kin in the Chthulucene. Duke University Press, 2016.
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PLUMWOOD, Val. Nature in the active voice. In: The handbook of contemporary animism. Routledge, 2014. p. 441-453.
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TSING, Anna. The mushroom at the end of the world. Princeton: Princeton University Press, 2015.
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KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Editora Companhia das Letras, 2019.
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PEREIRA, Reina Marisol. Eratóstenes. Constelações do Zodíaco. Imprensa da Universidade de Coimbra/Coimbra University Press, 2020.
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COCCIA, Emanuele. Metamorfoses. Rio de Janeiro: Editora Dantes, 2020.
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Op. cit
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HARAWAY, Donna J. Staying with the trouble: Making kin in the Chthulucene. Duke University Press, 2016.
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FAUSTO, Juliana. A Cosmopolítica dos Animais. São Paulo, N-1 Edições e Editora Hedra, 2020.
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Observatory of unreachable images
In 2100, spacecrafts begin the official campaign to colonize Mars, the rocky planet of the Solar System farthest from the Sun. After years of image capturing, prospecting, and the mobilization of a fundamental portion of industry - financed by millionaires - the first habitable city was built on the planet, in the image and resemblance of the terrestrial cities. As a way to save scarce resources on the red planet, entire ships of debris and construction cement were sent to Mars. The population migrating to the planet comes, in this first moment, from the most underprivileged layers of society: the proposal from international organizations is that they take over the land and build the 'planet of the future'. About 1000 Earth years after the beginning of life on Mars, the descendants of Homo Sapiens Sapiens who inhabited the planet start living together with a new species of hominid: Homo Sapiens Plantae. The new species emerges as a direct consequence of philosopher Donna Haraway's teachings about parenting, which are now seen by the population in an almost religious way. Homo Sapiens Plantae is the human-more-than-human-cyborg-plant and has better survival capabilities on the planet Mars.
This kind of epigraph is an introduction to the installation Observatory of Unreachable Images, by artist Leka Mendes. Science fiction has always been a genre that has interested me as a reader, but the effort to write it is almost Herculean, given the difficulty in imagining alternatives to the ways of inhabiting the planet that we have built as modern Western civilization in the Capitalocene. Writing this paragraph was an attempt to 'think differently', to look critically at the machine model in which we are inserted - and which subjugates and extinguishes entire populations - and to create a mobilizing fiction of other worlds. Resorting to fiction means, using Anna Tsing's words, creating "arts of living in a damaged world." Leka Mendes is one of these artists who lives and produces in the shortcomings of the world and fictionalizes from them.
For many years of her career, Leka has turned to photography. Since she was very young, when she was attending college, the language has appeared as a form of expression and work. She began to work professionally as a photographer and, in parallel, she dedicated herself artistically to the language. Leka is not interested in capturing decisive moments or faithfully reproducing the world captured by the camera to catalog aspects of the reality that surrounds us. For her, to photograph is to create an image of the world. This creation goes through the photographic act, the appropriation and capture of images that already exist, and the processes of developing and transferring these images to other surfaces. The various objects that make up the world in which we live are, for Leka, capable of becoming images.
As a constant procedure, she collects fragments and construction debris throughout the city of São Paulo. Initially, such debris is the surface that receives the images - through a process the artist calls post-revelation. In a second moment, the fragments are used as an image in themselves: they become stamps. Although abstract, these debris carry, in their materiality and in the form that is reproduced on the surface, the memory of where they come from. In the Anthroposcenics series, for example, the surface of raw cotton is marked by fragments and construction debris dipped in paint. Leka creates compositions that often remind us of small citadels, which spread across the entire surface of the fabric. Between the urban constructions, stars and satellites that orbit around the planet Earth are juxtaposed. There is, in these works, a certain contiguity between the human (and urban) landscape and the sky, which can be read as a kind of synthesis of the Anthropocene, in which the "fall of the sky", announced by David Kopenawa and other indigenous cosmogonies, is imminent.
In the series Soon it will be night, rock fragments and debris are used to create celestial compositions. The artist is inspired by Eratosthenes' book, Mythology of the Firmament - Catasterism. Catasterism is the act of transforming any being, animate or inanimate, into a star/constellation, with the aim of eternalizing it in the firmament. Soon it will be night, part of an ideal representation of the celestial landscape and of the impossibility of capturing the present in astrophysical time. There is, in the series, an idea of contiguity between the sky and the earth. Among Leka Mendes' references is the philosopher Emanuele Coccia, who states that "everything on earth is only the form and expression of the sky". Leka borrows this idea and creates small universes in fabric and gravel: our images of the universe are always images of the past, and it is in the rock, which makes up the earth's surface, that we find ourselves, with this long duration that escapes our hands and memory.
One could say that Observatory of Unreachable Images is a synthesis of this reflection about the contiguity between the sky and the earth. The artist creates, with light industrial structures that keep the memory of a certain prefabrication, supports for fabrics on which rest, like stars, fragments of pyrite and other minerals. To observe the small cosmos formed, there are also, in the installation, observation instruments, which remind us of telescopes, and which move around the physical space in which the observatory is set up. What do we see when we look at the various mineral fragments that form, gathered on a single surface, small universes? What clues for understanding the world we inhabit are given to us by the fragments of the earth's surface and by the industrial objects used by the artist to compose her microcosm?
It is interesting to turn again to the philosopher Emanuele Coccia to answer these questions. The author reminds us that, for centuries, humanity has dedicated itself to looking at the sky in search of signs to unveil the future and the hereafter. Meanwhile, the earth was understood as a kind of guardian of the past. This perspective is, according to him, a great misunderstanding, which made us confuse the relationship between future, past and present. The sky is one of the greatest repositories of the past, a kind of open-air museum of the history of the Cosmos; the earth, on the other hand, composed of the substance that comes from the sky, is what is present every day under our feet. In this sense, the author states that "if we want to know what is to come, we must not raise our eyes, but lower them and direct them at this piece of sky that is our own planet. In fact, everything that appears on earth is the future anticipated in the form of a bet. All the bodies of the earth are a speculative background; it is itself a future and futuristic body." In Observatory of Unreachable Images, Leka Mendes proposes that we look at the image of the sky - and all the past contained therein - and see the earth and the future.
In a way, this work also echoes the thought of Donna Haraway about the Anthropocene. For the philosopher, this period, and all the exploitative relations and unequal dynamics that are part of it - are earthly, that is, they are in and of the world. In this sense, they are open to question: should the Anthropocene be this way? There is not such a large window to see it differently yet, but there are still many good stories to be told by humans and the various species that share the world. The Observatory of Unreachable Images is an invitation to build and narrate other futures from what already exists in the world.