Observatório de imagens inalcançáveis
entrevista por Ana Roman para Temporada de Projetos 2022 do Paço das Artes
Leka Mendes e eu conversamos por alguns dias em seu ateliê no processo de realização dos trabalhos que integram a instalação Observatório de Imagens Inalcançáveis, projeto que integra a Temporada de Projetos de 2022. Nestas conversas, trocamos diversas referências que trazemos como breves citações neste texto.
AR: Leka, você poderia nos contar como a fotografia aparece em sua trajetória artística?
Cursei arquitetura até a metade da faculdade e me formei em Desenho Industrial na Belas Artes. Comecei a trabalhar com fotografia neste período como assistente, e segui trabalhando na área.
Na verdade, sempre trabalhei com fotografia a partir de um caráter experimental, mesmo antes de entrar no circuito das artes. Tive um pouco de dificuldade em me inserir em grupos de discussão e de acompanhamento em fotografia: usava uma máquina fotográfica que não funciona direito, meio quebrada, aquelas que você mesmo tem que rodar o filme, que tem uma entrada de luz maior do que o normal (...). Eu sempre me interessei por não ter, na minha prática como fotógrafa e, posteriormente artista, o controle da situação. Gosto de suspender o controle da imagem pela técnica e permitir que o resultado seja inesperado. Me interessa o inesperado que vem da exploração dos materiais envolvidos no processo fotográfico.
AR: Nos seus trabalhos e séries mais recentes, você trabalha a linguagem fotográfica a partir de uma espécie de 'campo expandido'. Em alguns momentos, as fotos são transferidas para fragmentos de entulho, em outros, elas são objeto de um processo de entintamento. Como estes processos aparecem na sua prática e de que forma eles revelam um pensamento fotográfico?
Minha pesquisa artística parte de um interesse pelos naturalistas. Em um determinado momento, eu comecei a mobilizar alguns processos mais experimentais: tenho uma série de fotografias que mergulho na tinta. Eu imprimo as fotografias em preto e branco, e faço o processo de mergulhá-las em tinta: procuro usar a tinta como um químico revelador. Chamo este processo de pós-revelação: ponho a tinta, misturo na própria foto, tiro das partes que não quero que fiquem pintadas. É um processo laboratorial e o resultado é sempre algo incontrolado: você só descobre depois que todo processo foi feito. Então, posso dizer que tenho, sempre tive, esse jeito de explorar a fotografia.
E, depois de ter incorporado o entulho como suporte para as minhas impressões, comecei a entendê-lo também enquanto matriz, como se ele fosse o negativo da fotografia. Eu utilizo o entulho como tipo de carimbo. O entulho passa a ser usado para produzir as imagens. Cada trabalho é único, pois é uma composição a partir destes diversos fragmentos de entulho. Ao mesmo tempo, porém, este procedimento guarda um pensamento fotográfico, uma possibilidade de reprodução. O entulho, que é o negativo, pode ser sempre impresso em uma nova superfície.
Se eu conversar com um gravurista, ele vai me dizer que há um pensamento de gravura neste processo. Para mim, tudo parte de um pensamento fotográfico. Os trabalhos da série Antropocênicas são fotografias. Algumas pessoas falam que é pintura, mas, para mim, tem um lugar de produção de imagem que é da fotografia.
A Natureza é apenas o nome para excesso.
JAMES, William. Pluralistic Universe. New York: Longmans, Green, And Co., 1909.
AR: Para mim, na série Antropocênicas, você está criando paisagens a partir de rastros daquilo que já temos no mundo. Há um processo de revelação destes rastros, que assumem outra forma quando deslocados.
Quando eu trabalhava com o que as pessoas normalmente consideram fotografia, eu viajava para lugares inóspitos para fotografar estes espaços. Atualmente, imagino paisagens que poderíamos visitar para fotografar. Ao invés de me deslocar no espaço, crio minhas próprias cenas aqui, no ateliê, usando materiais encontrados. Eu tento explorar as diversas técnicas fotográficas no meu próprio trabalho. Cada um dos fragmentos de entulho se torna uma imagem: algumas das pedras encontradas, quando carimbadas sobre a superfície do tecido, imprimem imagens que se assemelham a casinhas, outras podem ser lidas como satélites ou árvores. Há um tipo de alfabeto que tento criar nessas operações.
Quando começo a trabalhar com tecido, primeiro com as marcas destes entulhos como matrizes; depois incorporando o próprio entulho nas composições e, por fim, submetendo o tecido a processos químicos com estes compostos 'reveladores', como o alvejante e o cloro propriamente dito, meu objetivo é criar imagens. Nestas composições quase espaciais, da série Logo será noite, por exemplo, quando olhamos de longe, temos a impressão de estarmos diante de uma foto do universo e, quando chegamos perto, tudo isso muda. Um dos trabalhos que estará em exposição no Paço das Artes é um 'telemicroscópio' para ver galáxias: construí um "telescópio" com uma lente close up. O observador precisa estar próximo ao objeto, como um microscópio, mas ele parece estar diante de um mundo distante.
AR: As imagens do universo passam a estar presentes em seus trabalhos mais recentes. De que modo estas imagens, que trazem, em si mesmas, outros tempos, passam a se relacionar com a sua pesquisa artística?
Sempre penso, por exemplo, nas imagens que o próprio telescópio Hubble faz das diversas galáxias. Há alguns dias atrás, por exemplo, ele fez um novo grande registro do espaço: captou 2000 horas de imagens em apenas 250 horas de órbita. O tempo de registro destas fotos é muito maior do que o instante, que costumamos atribuir à linguagem fotográfica, e que, de certa forma, me interessa. O Hubble parece estar registrando o passado mais profundo que temos, talvez o começo do universo.
Os usos dos compostos químicos sobre os tecidos também estão submetidos ao tempo e isso tem a ver com alguns dos teóricos que eu tenho estudado, como o Emanuele Coccia. Quando submeto os tecidos aos compostos e exponho no sol, de alguma forma, estou, de algum modo, afirmando que o sol é uma força da natureza transformadora. Tudo faz parte de um mesmo ciclo: a criação de imagens é a criação da vida, e o sol é um dos agentes mais importantes nesse processo. O sol cria e revela as imagens, do mesmo modo que ele cria o mundo que nos cerca. E isso tudo afirma a ideia de que somos seres solares: não existimos sem ele.
O conjunto dos objetos e utensílios que nos cercam vem das plantas (os alimentos, o mobiliário, as roupas, o combustível, os medicamentos), mas, sobretudo, a totalidade da vida animal superior (que tem caráter aeróbico) se alimenta das trocas orgânicas gasosas desses seres (o oxigênio). Nosso mundo é um fato vegetal antes de ser um fato animal.
COCCIA, Emanuele. A vida das plantas: uma metafísica da mistura. Florianópolis: Editora Cultura e Barbárie. 2018
AR: Nestes trabalhos, o que me chama atenção é que há um processo de produção de imagens imaginárias do espaço sideral. Nós não sabemos se as estrelas que você retratou existem ou não, mas nada impede que, no movimento de nascimento e morte das estrelas, estas paisagens siderais tenham ocorrido ou ocorram em algum lugar do futuro. Em alguns trabalhos, as estrelas parecem estar sendo sugadas por um buraco negro. Por que o buraco negro, esta região do espaço-tempo que concentra tanta matéria e que não deixa nem que a luz escape, aparece nestes trabalhos?
O buraco negro está sempre sugando tudo e ele pode estar apontando para onde a gente está caminhando. Existem também os buracos brancos, né? Eles existem de uma forma teórica, mas não há ainda o registro de um destes. Eles são os lugares a partir dos quais toda matéria é expelida, de onde ela vem.
Os buracos negros são formados quando uma grande estrela começa a ficar sem combustível e colapsa sobre sua própria gravidade. Pensando em como exploramos, desde os solos mais profundos até o espaço sideral, parece que estamos caminhando para isso. Quando comecei a fazer os primeiros testes com os detritos como estrela, já fiz os buracos negros, já vinha fazendo com outras experiências com o alvejante e os carimbos de entulho.
Recurso natural para quem? Desenvolvimento sustentável para quê? O que é preciso sustentar.
Krenak, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo . Companhia das Letras. Edição do Kindle.
AR: O seu trabalho tem, o tempo inteiro, apontado para a criação de paisagens. Mas na materialidade que você explora, tem uma relação muito próxima com a cidade. Por que o elemento urbano aparece nos trabalhos?
Quando eu fazia essas viagens para fotografar, eu comecei uma série que se chama Operadores. Eu buscava na paisagem algumas construções humanas e criei um sistema que registrava tudo que eu poderia, de algum modo, utilizar o sufixo - ores para descrever. Eu buscava qualquer tipo de interferência arquitetônica do homem na geomorfologia e geologia dos lugares, queria entendê-las do ponto de vista extrativista, exploratório, mas também do ponto de vista do abrigo.
A arquitetura sempre esteve presente no meu trabalho. Eu fotografo comercialmente arquitetura. E eu sempre pensei muito em como o ser humano produz abrigos para si. Passando pela sedentarização, ou até antes dela, e pensando também nos animais, há uma necessidade de todos que estão no planeta de produzir um teto. E recentemente eu fiz um curso na filosofia e um dos assuntos era que, conforme as comunidades iam se organizando em torno destes abrigos, construíam-se também praças e monumentos. A construção de abrigos está diretamente relacionada à construção de imagens. Imagens que inicialmente tinham a ver com deuses: do mesmo modo que se produzem, por exemplo, abrigos contra o vento, cria-se a imagem do Deus do vento, que é objeto de culto.
Essas referências - e esse atlas de imagens - começaram a aparecer diretamente no meu trabalho. Inicialmente, aparecia como uma coisa geológica, mais mineral mesmo, e eu produzia umas peças de argila. Depois, o mineral passou a aparecer industrializado no meu trabalho, porque eu comecei a usar muito entulho - granitos, mármores e tudo que eu encontrava em reforma da casa. De alguma forma, ao usar esse mineral encontrado na paisagem da cidade no meu trabalho, eu tento fechar um ciclo. O mineral é extraído da natureza e usado para construir a cidade, depois ele vira entulho e eu me aproprio dele para construir outras imagens. Quando ele vira cidade, ele já foi usado para produzir imagem, mas é como se ele fosse usado para produzir outras imagens. Tem sempre uma relação com a memória e com um ciclo da vida e da natureza.
AR: Existe uma dimensão de sci-fi na criação destas imagens.
Para mim, estudar ciência é também estudar história. Eu acho que o Mario Novello fala isso. Imagina que tudo que a gente acredita que era ciência hoje foi, no passado, encarado como absurdo.
Eu adoro sci-fi principalmente quando retrata viagens a outros planetas e tempos. Comecei a pensar nestas séries mais recentes a partir de uma ficção de exploração interplanetária. De alguma forma, tento remeter à história da exploração humana em outros planetas e nas consequências deste processo, que guarda, em si mesmo, um caráter extrativista. O Observatório, por exemplo, que estou criando para a exposição do Paço das Artes, é esta mistura de um desejo de habitar o desconhecido de outro planeta e as consequências deste processo.
Até aqui a ciência tem tido sucesso na construção de uma estrutura formal capaz de produzir tecnologias geradoras de transformações do cotidiano da sociedade. Em particular esse projeto permitiu pensar a construção de estruturas globais como consequências formais de processos locais. Uma versão sofisticada, mas igualmente idealista, assegurou na prática a convicção de que o todo se produz a partir de suas partes e de algumas circunstâncias específicas. Foi graças a essa ilusão que a ideia de unificação dos processos físicos instalou-se na sociedade dos físicos como um eldorado a ser conquistado. Não como um simples fator simplificador, mas como uma etapa indispensável para a compreensão dos fenômenos observáveis
Mario Novello. Manifesto Cósmico in O Universo inacabado. Ed. N – 1 (2018)
AR: Dentro de tudo que conversamos, você poderia nos contar um pouco mais sobre a reunião destas imagens siderais no Observatório de imagens inalcançáveis? Por que construir um observatório para elas?
Conforme fui produzindo os trabalhos da série que dá origem ao Observatório e ocupando o ateliê, percebi que essa experiência imersiva, de poder circular entre os trabalhos era importante. Não temos noção da profundidade do universo, as “linhas” de estrelas que formam as constelações só existem do ponto de vista terrestre: a partir de outro ponto da galáxia já não seria mais possível nos orientarmos por esses desenhos. Me interessam as distâncias absurdas entre os planetas e os dispositivos que nos fazem, de algum modo, a gente se sentir mais perto delas.
Estes diversos pontos de vistas e distâncias, me fizeram pensar em "telemicroscópios", instrumentos que parecem telescópios com lentes close up, que já me referi anteriormente. Esses instrumentos vão orbitar pela instalação, assim como outros objetos que serão mudados de tempos em tempos.
Neste projeto, sigo com as seguintes perguntas que norteiam a minha pesquisa: O ato de construir essas imagens siderais estaria na mesma busca e se assemelha ao dos antigos seres humanos ao desenhar nas paredes das cavernas? Como a prática de assinalar o espaço sideral, marcando-o num tecido se configuraria na possibilidade de materializar o desejo de tocar o intangível? Seria a possibilidade de trazer até nós imagens fora do alcance do olhar, e após a pintura o próprio tecido se configuraria como um corpo cósmico vindo do espaço sideral? Seria uma possibilidade de aproximação dos vestígios e dos mistérios celestes, siderais e cósmicos?