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DESDE O APEGO: MEMÓRIA E GESTO

Projeto Fidalga
Coletiva
Curadoria Angel Calvo Uloa

Às vezes, a exposição que surge de uma encomenda torna-se um exercício tedioso, que constantemente nos leva a repensar tudo. Formalmente, o resultado é o que é, aquele que decidimos, mas é inevitável sentir alguma frustração ao descobrir que muitas dessas possibilidades que nos motivam permanecem guardadas. O ideal seria repensar a montagem ou seleção inúmeras vezes durante o período em que a exposição permanece, embora isso nem sempre seja possível. No entanto, existem outras encomendas que partem de uma tentativa de dar ordem ao afeto, àquelas relações que tecemos ao longo dos anos e que, sem saber como ou porque, de alguma forma conduzem a uma harmonia formal que jamais imaginaríamos. A exposição que acompanha este texto é um daqueles projetos em que o apego a certas pessoas resulta em algo que é realmente a desculpa para promover uma reunião e um diálogo em torno de uma série de questões que perduram para além da sua resolução formal.


Sandra Cinto e Albano Afonso propuseram que Otávio Zani, Ding Musa, Leka Mendes, Luiz Telles e eu trabalhassemos juntos em uma pequena exposição em que a abertura inaugura como um espaço de exposições a sala que até recentemente era o ateliê do artista Felipe Cama no número 299 da Rua Fidalga. O que inicialmente foi um projeto entre os artistas ligados ao Projeto Fidalga, levou a três novos convites aos artistas Laura Belém e André Ricardo, além do filósofo e poeta Emilio Araúxo. O processo partiu de uma reflexão sobre os motivos que nos levaram a fazer essa exposição, ou melhor ainda, a torná-la necessária. As imagens com as quais Otávio Zani trabalha, muitas delas mentais ou extraídas de seu álbum de família, o levam em algumas ocasiões a transferi-las para a técnica da gravura, à matrizes escavadas na madeira que ganham vida de maneira nada aleatória, a pintá-las em um metacrilato para, com alto componente de azar, convertê-los em monotipias fixadas ao papel por meio da prensa. Atualmente, Zani trabalha em uma série de guaches que começa com imagens fotográficas transferidas a lápis para o papel. Depois disso, o grafite desaparece para permitir que a cor da ganhe gestualidade, evitando os limites da linha, que permanece escondida sob a têmpera. Zani trabalha a meio caminho entre a mímesis e o impulso das lembranças, que são transferidas para o suporte através dessa mistura entre a memória e o gesto evocados em nosso título.
Gesto e memória. As ideias trilham caminhos distintos nesta exposição, mas sempre partem de um componente íntimo localizado em cada uma das imagens que compõem a montagem. No caso de Emilio Araúxo, isso se apresenta em cinco fotografias que
detalham o encontro entre a poeta sueca Helena Eriksson e a camponesa galega Isolina Pumar.


Isolina foi, até poucos meses depois daquele encontro, a lembrança viva de um mundo condenado a desaparecer: o êxodo do campo e o conseqüente fim do campesinato como é compreendido há séculos. Estes instantâneos foram feitos por Emilio Araúxo na noite de 17 de fevereiro de 2015 em Boazo, província de Ourense, Galiza. Neles, a lembrança do momento se alia ao gesto que pouco a pouco os leva a participar daquele encontro que Araúxo intitulou como “tarde voltarás”, frase que Isolina pronunciou na despedida, quando Helena assegurou que a visitaria novamente.


Dias atrás, falando com o pintor André Ricardo sobre esses conceitos, ele me lembrou de uma série de aquarelas que começou a pintar em 2016, sob o título de “Campo Limpo”, em alusão direta ao bairro onde viveu nos últimos seis anos. Campo Limpo, um distrito localizado ao sul de São Paulo, cresceu na década de 1960 como resultado da expansão de Santo Amaro e da rápida industrialização da região. O resultado é um bairro cheio de pequenas casas de alvenaria nas quais uma multidão de trabalhadores nordestinos começou suas vidas nesta megalópole. As aquarelas de André Ricardo supõem quase uma premonição de sua saída deste lugar e da lembrança que o contraste geométrico e cromático deixou inevitavelmente em sua pintura.


Em relação aos processos de construção, Leka Mendes começou há muito tempo a fazer transferências fotográficas em fragmentos de detritos de construção. Essas imagens, selecionadas de episódios históricos ligados a gestos destrutivos, despertaram na artista uma consciência da própria forma dos escombros sobre os quais as imagens foram impressas e, meses depois, os escommbros passaram a servir de suporte para transferir sua forma a um tecido. O fragmento como uma imagem em si, transferindo para uma composição abstrata a memória de sua forma para reivindicar a importância de cada uma daquelas partes que anteriormente compunham um todo. Da mesma forma, esses fragmentos transferidos por meio de uma tinta plana nos remetem inevitavelmente aos mosaicos de peças de cerâmica vermelha com as quais os operários da indústria de São Caetano cobriram o chão de suas casas por décadas.
De um gesto aleatório como esvaziar nossos bolsos ao voltar de uma viagem, podem ter surgido as “Conversas Diplomáticas” que Laura Belém produziu em 2009 aproximando pares moedas com seus personagens historicamente destacados. Cada conversa possível remete inevitavelmente à ironia do gesto que os colocou face a face mantendo um diálogo atemporal que, com toda probabilidade, nunca aconteceu. Laura Belém também nos leva à intimidade e ao papel do espectador como testemunha de uma conversa a dois para a qual não fomos convidados. O resultado é uma composição geométrica, sem razão aparente, que deixa espaços abertos e evidencia tanto a existência quanto a falta de diálogos.


Luiz Telles desenvolve uma pintura rápida, com forte carga gestual, que é apresentada em antigas lonas de caminhão reutilizadas. Telles tem construído uma história baseada na figura de Gilgamesh, rei sumério cuja epopéia é considerada a mais antiga obra literária do mundo. Assim, através de uma extensa coleção de livros de esboços e tecidos, foi gradualmente configurando um formato a meio caminho entre a imagem pictórica e a narrativa ordenada oferecida pela encadernação desses tecidos. Para Luiz Telles, a recente perda de sua mãe transformou aquela história estrangeira, que sempre guiou sua pintura, na busca de uma lembrança familiar apresentada como um gesto íntimo, que combina aquela pintura da qual ele é agora o protagonista, com fotografias transferidas a uma gaze que os torna transparentes e inconsistentes, como se eles próprios alertassem para a fragilidade da memória.
Em uma das paredes deste novo espaço está uma fotografia de Ding Musa na qual seu trabalho habitual com a arquitetura moderna tropeça no caráter popular de uma parede de tijolos irregulares, assim como um leve gesto que provoca uma sutil aproximaçao à abstração pictórica. Musa vagueia por um espaço em que o efeito às vezes joga com o engano, em alguns momentos pela verdade e em outros pela mentira. A captura do instante permite assistir a um estado provisório que anuncia uma mudança, assim como o espaço aberto que é sugerido na parte superior, mas que foi fechado. Deste modo, o muro constata o privado ou o que a pintura sobre ele é capaz de dizer e silenciar.


O gesto, além de se referir a um movimento físico involuntário ou aprendido, também sugere um fato que implica um significado ou uma intencionalidade. Os trabalhos aqui reunidos referem-se a esses diferentes significados. Por esta razão, este projecto que assume agora a forma de uma exposição, pretende mostrar-se como o resultado desse gesto involuntário ou erudito, bem como uma tentativa de prestar homenagem a uma série de pessoas e a um modo de fazer que encontrou no apego e na a intenção os motores que ativaram esta estrutura.


Entendo o Projeto Fidalga como uma casa em que, sem programar, alguém pode parar para um café e discutir durante horas sobre questões que em outro lugar custaria muito a começar. O Fidalga é minha biblioteca em São Paulo e o primeiro lugar que me acolheu.
Por esta razão, este projeto fala mais de um espaço que eu entendo como familiar, da mesma forma que a casa da minha mãe ou do meu pai, em cujas paredes estão dispostos, mais que uma série de obras interligadas por um fio discursivo, fragmentos de uma vida, reunidos pouco a pouco e por razões de peso ligadas ao apego.

Texto: Ángel Calvo Ulloa 
Tradução: Carolina Cordeiro

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