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Continente Absoluto

por Gabriel Tavares de Lima

 

Em meio às ruínas, os ventos solares sopram a nossos ouvidos. Seus murmúrios de memórias cósmicas são ignorados. Tentando manter a unidade em meio a uma simbiose circundante, fixamo-nos na dimensão humana de nossa própria voz. Essa dimensão, autoritária e totalizante, brada ensurdecedoramente, nos fazendo alheios ao caráter atmosférico da existência. Em nossa confusão, recusamos reconhecer que dela somos parte integrante. A insistência obsessiva em tomar a centralidade como modo de estar no mundo apenas expõe nossa incapacidade de ouvir em cada som o sopro de vida, de pensar a existência como um movimento de afetação mútua na qual, da linha do horizonte à abóbada celeste, dançam todos os seres. Neste “horizonte definitivo” onde “já não se tolera nenhuma exterioridade”, conforme nos sugere Emanuele Coccia, não há distinção entre trajetórias terrenas e celestes, “tudo sobre a terra é apenas a forma e a expressão do céu”. 

Aceitando o convite de Coccia para “pensar o mundo físico como o conjunto de todos os objetos, o espaço que compreende a totalidade de tudo que foi e será”, Leka Mendes, com os pontos de suas flâmulas, sutura a cisma entre corpos terrenos e corpos celestes. Estandartes da adesão total ao cosmos, a série ‘Logo será noite’ (2020) é o registro do processo de aproximação proposto por Leka no qual a dinâmica imagética ganha corporalidade através dos materiais têxteis. Tecidos rugados e justapostos propõem uma leitura alternativa da paisagem celeste, dando aos astros nuances subjetivas para além do vocabulário cientificista ao qual os relegamos. Gradualmente se juntam aos recortes interferências de natureza química, procedimento familiar à artista que nos remonta a seus trabalhos de matriz fotográfica, em especial às séries “Mapas Estratigráficos” e “Pós-revelado”. Ao compreender a incapacidade da memória humana de registrar as dinâmicas espaciais, o trabalho se volta para a única dimensão da memória possível na relação com os seres astrais, a luz. Registro de uma realidade não mais existente, a luz fóssil que chega à Terra é capturada nos tecidos da artista de forma semelhante à memória humana: sobredeterminada e com limitações frouxas. Memórias amorfas nos contam de acontecimentos cósmicos. Buracos negros e formações de galáxias, convocados a extrapolarem as limitações astronômicas e geológicas, são aqui registrados como parte integrante de uma história compartilhada.

À medida que os astros ganham contornos cada vez mais palpáveis, as formas ganham pujança.  Tinturas e recortes de caráter difuso escapam do simbólico para o material, a luz se transforma em detrito, evidência de um tempo não presente. A história geológica se funde ao processo de coleta dos componentes móveis da obra, hora como parte integrante de instalações, hora como clichês para gravuras. Vestígios de procedimentos afetivos para além do deslocamento promovido ao longo do trabalho, os componentes móveis são referentes da movimentação engendrada dentro da pesquisa, na qual o sopro da vida não é apenas forma, como também conteúdo. A mobilidade está posta como continente absoluto. Na instalação ‘seguimos caminhando sobre cacos’ (2020) há um convite implícito para a reapropriação da rede de significados articulada pelos móveis. O movimento proposto pela artista alude aos infinitos deslocamentos dos materiais, sejam eles processados por procedimentos humanos ou não-humanos, bem como as relações de sentido propostas. Já na série Antropocênicas (2020-2021), os detritos-clichês são articulados como evidência de um imaginário de outra época, registros de uma memória do porvir. A dinâmica temporal presente no jogo entre corpo e imagem de Antropopocênicas expande o movimento para além da cognoscência. Já não é possível objetivar os seres celestes, apenas imergir em seu movimento.

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